Treinamento ou Entretenimento? O Risco de Confundir Aprendizado com Show Corporativo
- Better Blog

- 13 de out.
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Muitos programas de T&D continuam sendo tratados como custo, não por falta de importância, mas por ausência de evidências concretas de retorno. Transformar esse cenário exige conectar as métricas de aprendizagem ao desempenho do negócio e traduzir resultados pedagógicos em impacto financeiro.
Em meio a essa transformação, uma tendência ganhou palco e luz própria: transformar o treinamento em um verdadeiro espetáculo. Palestrantes carismáticos dignos de TED Talks, produções multimídia que parecem saídas de Hollywood, dinâmicas gamificadas com rankings e prêmios, e eventos grandiosos em cenários paradisíacos — tudo isso se tornou quase obrigatório. A intenção é nobre: engajar uma equipe cada vez mais diversa, distraída e exigente.
Mas há uma linha tênue entre inspirar e entreter. E é justamente aí que mora o risco. Estamos realmente promovendo uma aprendizagem corporativa profunda e transformadora — ou apenas oferecendo um show corporativo, cheio de brilho, mas com pouco impacto real?
É fácil entender o fascínio pelo entretenimento. Depois de meses de metas desafiadoras e rotinas intensas, todo mundo aprecia uma pausa inspiradora. Os líderes querem ver suas equipes motivadas e cheias de energia. Um evento com alto fator “wow” cria buzz instantâneo, rende boas fotos para o Instagram da empresa e espalha um clima temporário de entusiasmo coletivo.
O problema não é usar essas ferramentas — elas podem ser ótimas quando bem aplicadas. O perigo está quando o formato rouba o protagonismo do conteúdo. Quando o brilho da produção ofusca a essência do aprendizado. Nesse ponto, o resultado deixa de ser investimento estratégico e vira apenas custo de curto prazo. E, pior: corremos o risco de alimentar uma cultura de “treinamento-espetáculo”, em que o aplauso substitui a aplicação e o aprendizado real dá lugar a um entusiasmo que dura só até o próximo coffee break.
A Armadilha do Engajamento Superficial: A Sirene do "Happy Sheet"
Para compreender a fundo essa encruzilhada, é crucial dissecar o conceito de "engajamento", uma palavra de ordem no mundo dos negócios que, no contexto da aprendizagem corporativa, possui duas facetas radicalmente distintas: a superficial e a profunda.
O engajamento superficial é aquele metricamente fácil de capturar e, por isso, frequentemente supervalorizado. É medido pelo sorriso estampado no rosto dos participantes, pela risada coletiva durante a palestra do keynote speaker, pela empolgação com a dinâmica de gamificação ou pelas notas máximas no questionário de satisfação – os famosos "happy sheets". Este engajamento é predominantemente emocional e reativo. Ele responde a estímulos externos: um palestrante carismático, uma atividade divertida, um coffee break de luxo. É um engajamento de curto prazo, que se dissipa tão rapidamente quanto a euforia do evento.
Em contrapartida, o engajamento profundo é cognitivo, comportamental e, muitas vezes, desafiador. Ele não busca necessariamente o sorriso fácil, mas sim a expressão de concentração, o olhar pensativo, a pergunta que desafia o status quo. Manifesta-se não na sala de treinamento, mas no local de trabalho, pela aplicação prática de um conceito em um projeto real, pela tentativa (e eventual falha) de uma nova técnica, pela mudança duradoura de atitude perante um problema crônico. É um engajamento silencioso, que não gera necessariamente fotos para o Instagram, mas gera resultados mensuráveis para o negócio.
A confusão sistêmica entre esses dois tipos de engajamento é a raiz do problema que assola muitos programas de T&D. Um colaborador pode classificar um treinamento como "excelente" no questionário de satisfação porque o palestrante foi hilário e o almoço estava delicioso, mas ser completamente incapaz de explicar o conceito central do curso ou de aplicá-lo em sua função uma semana depois. O "show" foi um sucesso retumbante, mas a eficácia do treinamento foi um fracasso absoluto. O risco aqui é duplo e perigoso: primeiro, criamos inadvertidamente uma cultura organizacional que passa a valorizar mais a experiência momentânea e hedonista do que a construção de competência duradoura e aplicável. Segundo, e mais grave, mascaramos a ineficiência pedagógica com pirotecnia emocional, tornando-se extremamente difícil para os gestores identificarem e corrigirem as falhas genuínas no processo de aprendizagem. O "happy sheet" vira um aval perigoso, justificando novos investimentos em formato, mas não em conteúdo.
Do Teatro à Transferência: Medindo o que Realmente Importa para o Negócio
Esta confusão entre forma e conteúdo reflete-se diretamente no que as organizações escolhem medir. E os números confirmam isso: na pesquisa Panorama de Treinamento no Brasil 2019/2020, realizada pela ABTD, cerca de 68% das empresas ainda utilizam apenas indicadores de reação (ou seja, perguntam se o colaborador “gostou” do treinamento), enquanto apenas 7% medem de fato os resultados. A métrica preferida e mais fácil do "show corporativo" é, como visto, a satisfação do participante. É uma métrica de reação, focada no "como me senti". Enquanto isso, a métrica essencial e incontornável de uma aprendizagem corporativa verdadeiramente eficaz é a transferência do conhecimento para a prática. Esta última é significativamente mais complexa, trabalhosa e cara de capturar, mas é a única que possui uma correlação direta e inegável com os resultados do negócio.
Como, então, migrar da avaliação do teatro para a análise científica da transferência? A resposta não está em abandonar as pesquisas de satisfação, mas em subordiná-las a um modelo mais robusto e estratégico de mensuração. É necessária uma mudança de paradigma, que priorize indicadores de desempenho e comportamento.
Foco em Comportamentos Observáveis, não em Opiniões Subjetivas: Em vez de perguntar "Você gostou do treinamento?", as pesquisas pós-evento devem evoluir para questionários de follow-up estratégicos, aplicados 30, 60 ou 90 dias após a intervenção. Perguntas como "Você aplicou alguma das técnicas aprendidas na última semana? Descreva brevemente a situação."; "Que obstáculos você encontrou para implementar o que foi aprendido?"; ou "O seu gestor conversou com você sobre a aplicação dos conceitos do treinamento?" são infinitamente mais reveladoras. Elas forçam uma autorreflexão sobre a prática, não sobre o sentimento.
Vinculação Direta a Indicadores de Desempenho de Negócio (KPIs): Todo e qualquer treinamento deve ser concebido a partir de um problema de negócio específico. Consequentemente, sua eficácia deve ser mensurada pela melhoria nos KPIs associados a esse problema. Se o treinamento é sobre técnicas avançadas de vendas, o KPI a ser monitorado é a taxa de conversão, o ticket médio ou o ciclo de vendas. Se é sobre gestão de projetos ágeis, os KPIs são a redução no tempo de entrega (lead time) ou o aumento na qualidade do produto final. Se o treinamento é sobre liderança inclusiva, o KPI pode ser o índice de retenção de talentos na equipe, os resultados de pesquisas de clima organizacional (eNPS) ou a diversidade em posições de liderança. Se não há um KPI de negócio claramente associado e definido antes da concepção do treinamento, vale a pena questionar profundamente a sua razão de ser e o seu impacto real potencial.
Avaliação de Competências Pré e Pós-Treinamento: A forma mais objetiva e direta de medir o impacto real de um programa de aprendizagem é avaliar o nível de habilidade ou conhecimento dos colaboradores antes e depois da intervenção. Isso vai muito além de um teste múltipla escolha no final do curso. Pode envolver a criação de simulações realistas de situações de trabalho (assessment centers), a análise de um portfólio de projetos realizados após o treinamento ou uma avaliação 360 graus focada em comportamentos específicos que o curso se propôs a desenvolver. A diferença entre a linha de base (pré) e o resultado (pós) é a medida mais pura do valor agregado pelo treinamento.
O Caminho do Meio: O Engajamento Estratégico como Solução Sustentável
Abandonar completamente as técnicas modernas, interativas e engajadoras não é, de forma alguma, a solução. Isso seria como voltar à idade das trevas do treinamento corporativo, alienando ainda mais os colaboradores. O desafio do século XXI para os líderes de T&D não é eliminar o entretenimento, mas sim subordiná-lo de forma inteligente e consciente aos objetivos de aprendizagem. Trata-se de evoluir do "show" pirotécnico para o que podemos chamar de engajamento estratégico. Isso significa desenhar experiências de aprendizagem onde a diversão, a interação, a emoção e a tecnologia são veículos pedagógicos para a consolidação do conhecimento, e não o destino final em si mesmos.
Eis como as organizações podem começar a construir esse equilíbrio delicado e poderoso:
Contexto antes do Conteúdo: A Aprendizagem Experiencial: Um jogo, uma atividade em grupo ou uma simulação é poderosa apenas se estiver visceral e intrinsecamente conectada à realidade diária do trabalho do participante. Um quiz teórico sobre as políticas de compliance é entediante e rapidamente esquecido. Já uma simulação interativa e imersiva, onde o colaborador deve tomar uma série de decisões éticas e legais em um cenário corporativo realista, é cativante, emocionalmente carregada e profundamente educativa. O contexto transforma a abstração teórica em algo tangível, prático e, portanto, memorável. O engajamento aqui nasce do desafio de resolver um problema familiar, não do brilho superficial da ferramenta.
Do "Instrutor-Star" ao "Facilitador-Architect": O palestrante que apenas performa, que é o centro das atenções e o detentor único do conhecimento, cria um ciclo de dependência. Os participantes se tornam plateia passiva. O verdadeiro agente de transformação é o facilitador que atua como um "arquiteto" da aprendizagem. Sua função não é brilhar, mas guiar, provocar reflexão, mediar debates ricos e, acima de tudo, criar as condições e a estrutura (a "arquitetura") para que os próprios participantes construam coletivamente o conhecimento, conectando-o às suas próprias experiências. Este profissional gera autonomia, não admiração.
Microlearning Aplicado: A Jornada Contínua vs. o Evento Esporádico: Em vez de investir pesado em um único "evento-espetáculo" anual, que gera pico de engajamento seguido de um longo vale do esquecimento, as organizações de ponta estão migrando para uma jornada contínua de microaprendizados. São pílulas de conteúdo extremamente curtas, focadas em uma única habilidade ou conceito, e – este é o ponto crucial – seguidas de uma tarefa prática de aplicação imediata no fluxo de trabalho. Por exemplo: um vídeo de 5 minutos sobre uma técnica de escuta ativa, seguido da instrução "Na sua próxima reunião 1:1, pratique esta técnica e registre suas observações". Este modelo combate ativamente a curva do esquecimento (que mostra que esquecemos a maior parte do que aprendemos em poucas horas ou dias) e integra o aprendizado de forma orgânica e não disruptiva ao cotidiano, gerando um impacto real constante, cumulativo e sustentável.
Cultura da Aplicação: O Papel Fundamental da Liderança: A aprendizagem não termina quando o treinamento acaba. Na verdade, ela só começa verdadeiramente ali. Se não houver um ecossistema organizacional que incentive e exija a aplicação do conhecimento, todo o investimento anterior será em vão. Os líderes diretos devem ser os principais cocriadores e cobradores da transferência do aprendizado. Isso começa no pré-treinamento, alinhando expectativas ("Por que você está participando deste curso e o que espero que você traga de volta?"), e continua no pós-treinamento, com perguntas simples, mas poderosas nas reuniões de rotina: "O que você aprendeu no último módulo que podemos testar no nosso projeto atual?"; "Como posso ajudá-lo a superar as barreiras para aplicar essa nova ferramenta?". Esta atitude demonstra, de forma inequívoca, que a empresa valoriza a transferência e o resultado, não apenas a participação e a satisfação.
Conclusão: Resgatando a Essência da Aprendizagem Corporativa para um Impacto Real e Duradouro
A busca incansável por treinamentos mais dinâmicos, humanos, interativos e relevantes é, sem sombra de dúvida, um avanço positivo e necessário. Representa a evolução de uma visão mecanicista do capital humano para uma visão mais holística e empática. No entanto, não podemos permitir que o brilho sedutor das ferramentas modernas ofusque completamente o propósito fundamental para o qual elas foram concebidas.
Aprendizagem corporativa que é verdadeiramente eficaz, por sua própria definição, deve ser transformadora. Ela exige esforço cognitivo, desconforto produtivo (sair da zona de conforto), prática deliberada e, acima de tudo, tempo para reflexão e consolidação – elementos estes que um mero show de entretenimento, focado no prazer imediato, não pode e não deve se propor a fornecer.
O risco de confundir aprendizado com entretenimento é, em última análise, um risco estratégico para a competitividade e a saúde financeira da organização. Empresas que se contentam com os indicadores superficiais de satisfação e com o engajamento efêmero estarão, inevitavelmente, fadadas a possuir uma força de trabalho permanentemente entretida, mas não necessariamente mais capacitada, ágil ou inovadora. Investirão em ilusão.
Já as organizações que possuem a coragem e a visão de longo prazo para priorizar o engajamento estratégico – aquele que é planejado, mensurado pela eficácia do treinamento e definido pelo impacto real no negócio farão muito mais do que um simples investimento em capacitação. Construirão, tijolo por tijolo, a cultura de aprendizado contínuo, aplicado e relevante que é o verdadeiro alicerce para a inovação e a excelência sustentável. A pergunta crucial que todo gestor, líder de T&D e CEO deve fazer ao avaliar um programa de treinamento não é mais "Os meus colaboradores gostaram?", mas sim "O que os meus colaboradores são capazes de fazer de diferente, melhor e mais inteligente a partir de agora, que traga resultados tangíveis para a empresa?". A resposta honesta a esta questão é o divisor de águas que separa um investimento estratégico inteligente de um dispendioso e vazio show corporativo. O futuro da aprendizagem não está no espetáculo, mas na transformação mensurável.









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